segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A CANÇÃO DO RIO

foto/Lilian Reinhardt/Guaraqueçaba/PR


CLAUDIO BENTO




Descamba o rio em seu delírio

depois de inventar nascentes e minadouros

demarcar seu curso

lamber praias e barrancas

adentrar suas ilhas

suas ilhotas rodeadas de silêncio e pedras

descamba o rio em seu delírio

em sua desvairada sonata de correntes correntezas corredeiras

sua canção de peixes

suas lavadeiras

sua Yara de cabelos pretos de índia xacriabá

seu caboclo d'água sentado na pedro do segredo

seu delírio sua febre seu desvario

Descamba o rio

em vilas cidades em terras jequitinhonhas

descendo a pedra redonda do Sêrro do Frio

para banhar o vale encantado da infância perdida

em terras de Araçuaí

em terras almenaras

em veredas de Itinga Salto Grande Pedra Verde Guarani

para despencar em terras baixas onde é chamado rio de areia

O rio agora é rio de areia

e persegue o mar

sonha o sal do oceano

para desmanchar-se em lume

agora o rio entre sem licença sem peia

ancho de água e barro

enchente

é o teu nome

que derruba casas

devora terras

doura a sede

despista a fome

o rio agora é fúria

o rio agora é raiva

insano menstruo de sangue e lama

o rio agora é mar

e banha jacintos de chuva

itiras retirantes

diamantinas de luares sobre o espelho d'água do rio

o rio agora é mar

e acaba de invadir Itapebi

muita gente perdendo casas

perdendo vidas

perdendo a alma

só a lama e as cobras perduram neste sertão de sol ardente

um rio é feito de outros rios

para entregar-se a um só mar

o mar de Netunho e Janaína

o mar de Colombo e Vespúcio

descamba

o rio em seu delírio sua febre seu desvario

Um comentário:

Cotovia disse...

...corre rumo ao oceano, sabe que se vai perder para fazer parte de algo maior. Tal como nós, caminhamos até à morte, para deixarmos de existir e então pertercermos a algo maior.


Uma boa Páscoa